segunda-feira, 17 de junho de 2013


Reflexões para redação de uma sequência didática: "Avestruz", de Mário Prata

"Avestruz" é uma narrativa repleta de digressões, intervalos para explicações enciclopédicas, bem humoradas e caracterizada pela informalidade. Aproxima-se mais da crônica que do conto: comentários acerca do incomum ou do ordinário na vida humana. Na esteira de "O gigolô das palavras", texto muito conhecido de Luís Fernando Veríssimo e "No aeroporto" (Carlos Drummond de Andrade), "Avestruz" reverbera erudição sem pedantismo, utilizando-se de um conhecimento de mundo sensível à curiosidade infantil, e de uma jocosidade própria ao adulto que, leitor ou escritor, vivenciou arroubos como o da criança que deseja um avestruz em seu apartamento. 

Por este motivo, a mencionada crônica cabe perfeitamente em uma ou mais aulas de língua portuguesa a serem ministradas tanto aos alunos do ensino médio quanto aos do ensino fundamental. A crônica vai se descortinando ao longo das várias aulas, dos vários anos e releituras. Do animal ao substantivo comum de dois gêneros; do ser ao léxico; do bicho ao simbolismo, havendo algum (por que não um ornitorrinco?). O voo impossível da ave como piada pronta, encarnação da ironia como a mais cruel das figuras de linguagem, pensamento ou retórica. 

São dois os mundos que se cruzam: selva e cidade, mata e urbe. Que choques e colisões podem decorrer de um desejo tão inusitado como o de pretender uma avestruz? E que avestruz é esta que há de se mostrar incompatível com as dimensões de uma quitinete? Percebe-se que as questões inerentes aos fatos da língua são os que menos importam até o presente momento. 

Mário Prata escreveu livros bons, dois dos quais li com muito prazer: "Diário de um magro" e "Minhas mulheres e meus homens". Minha experiência de leitor de Mário Prata possivelmente facilitar-me-ia o trabalho com os alunos, estaria falando de um escritor que não me é totalmente desconhecido e cuja ignorância residual seria facilmente suprimida no planejamento da aula ou quando da ação urgente e incerta, se fosse o caso de ter nas mãos a crônica sem antes ter elaborado um plano de aula por diversos motivos. 

Até que ponto estamos dispostos a assimilar o estranho como faz uma criança no aconchego de seu universo? O que este universo encantado tem a ensinar ao adulto incapaz de distinguir imaginação de distúrbios comportamentais? Mário Prata, despretensiosamente, introduz questões próprias à realidade das crianças de apartamento, cada vez mais mimadas e superprotegidas. Do que as crianças e os jovens (que como já disse o poeta, não são levados a sérios), estão sendo protegidos? Quais os seus anseios para além do mero consumismo estimulado pelo merchandising dos Patatis da vida? 

Será um avestruz um avestruz? Um (a) avestruz (a) é um (a) avestruz (a) é um avestruz..? E que Deus é este, cuja grafia de seu nome, na crônica, tem a primeira letra minusculamente redigida? E que garoto é este, insistimos, "filho de uma grande amiga", que, irredutível, quer porque quer abrigar no interior do seu lar as aberrações criadas por este ser superior? 

Temos, na crônica de Mário, a curiosidade e o saber a serviço do encantamento, do maravilhamento concomitante à lenta e gradual maturação. Afinal, o que é possível ter, conhecer, saber, desejar, realizar? Quais as diferenças dos sonhos de consumo de um infante para os sonhos de consumo de um adulto? Quais os mais absurdos? Os mais palpáveis? Os menos prejudiciais? O personagem "filho de uma grande amiga", aqui, ecoa outro belo infante a insistir com seu interlocutor: "desenha-me um carneiro".

Vinícius Gonçalves de Andrade      
    




Reflexões acerca de sequência didática visando fruição estética por meio da leitura 

     "Avestruz", de Mário Prata, "Pausa", de Moacir Scliar e "Meu primeiro beijo" (Antônio Barreto) são textos que atingiriam em cheio o aluno, assim como uma campanha publicitária logra atingir seu público-alvo quando bem sucedida. . A necessidade de estar só, com o outro, de conhecer e conviver com o estranho, a curiosidade e a atração e a repulsa: tópicos e temas a confluirem para fruição estética do leitor se a nossa sociedade fosse, de fato, uma sociedade grafocêntrica.
     Pessimismos à parte, é preciso discutirmos se esta, de fato, é uma escolha a ser ratificada no futuro por nossos jovens educandos que, quanto mais leem, menos entendem.
     Nesta perspectiva, vale a pena nos questionarmos, como professores, se a tradição escrita será mantida pelas gerações futuras, se serão necessárias, se serão desejadas e usufruídas. Uma questão que deve ser colocada aos alunos, inclusive.
     Uma sequência didática que tenha a leitura e cidadania como tema deve levantar esta questão: sendo a escrita um dado / fato da nossa cultura (estrutura social, econômica, política), estariam nossos aprendizes dispostos a manter leitura e escrita no cerne de suas existências?
     Quanto tempo mais resistirão nossos jovens aos apelos da imagística pura (imagem que vale por mil palavras), aos apelos, enfim, do ágrafo? 

Vinícius Gonçalves de Andrade

domingo, 16 de junho de 2013

Sequência didática - Texto "O primeiro beijo"



Texto “O primeiro beijo”, de Clarice Lispector

Série: 7º ano
Tempo: Aproximadamente 6 aulas.

 Sequência didática

Conteúdos:

Definição do gênero conto.
Traços característicos do gênero.
Leitura e escuta do texto.
Apresentação de um breve resumo sobre a bibliografia da autora.
Estudo do vocabulário.
Compreensão e Interpretação do texto.
Produção de texto.

Habilidades:

Perceber o aspecto interativo do texto lido e a função social dele.
Reconhecer os elementos organizacionais e estruturais 
caracterizadores do gênero conto.
Ler com ritmo, entonação, respiração, qualidade de voz, elocução e pausa.
Conhecer um pouco da história de vida da escritora Clarice Lispector.
Enriquecer e ampliar o vocabulário.
Formular hipóteses de sentido a partir das informações encontradas no texto.
Analisar a variedade padrão em funcionamento no texto.
Produzir textos escritos de acordo com o gênero proposto.

Estratégias:

Leitura silenciosa.
Leitura oral compartilhada.
Levantamento e análise dos elementos estruturais do texto.
Leitura da bibliografia da autora.
Atividades de vocabulário – Auxílio do dicionário.
Atividades de interpretação e compreensão do texto.
Produção de um mini conto com roteiro.

Avaliação:

Avaliação contínua do empenho e desempenho das atividades propostas.

Recursos: Lousa, cópias das atividades elaboradas pelo professor e cópias do texto.




O primeiro beijo


Clarice Lispector

            Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
            - Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
            - Sim, já beijei antes uma mulher.
            - Quem era ela? Perguntou com dor.
            Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
            O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
            E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, puxa vida! Como deixava a garganta seca.
            E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
            A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
            E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
            Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-se mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
            O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
            De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
            Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era a boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
            E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para a outra.
            Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
            Ele a havia beijado.
            Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para a frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
            Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
            Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
            Ele se tornara homem.

(In “ Felicidade Clandestina” – Ed. Rocco – Rio de Janeiro, 1998)


Breve bibliografia da Autora – Clarice Lispector

Nascida Haia Pinkhasovna Lispector, nasceu em 10 de dezembro de 1920, na cidade russa de Tchetchelnick, na Ucrânia, quando seus pais, Pedro Lispector e Marian Lispector deixavam a terra natal com destino às terras brasileiras.
A família se instalou em Recife (PE), onde a futura escritora começou a estudar.
Faleceu em 09 de dezembro de 1977 no Rio de Janeiro(RJ).
Foi uma escritora e jornalista nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira. Quanto ao estado pertencente, Clarice se declarava pernambucana.

Referências bibliográficas:

Currículo do Estado de São Paulo: Linguagens, códigos e suas tecnologias/ Secretaria da Educação. São Paulo: SEE. 2010.

Projeto Araribá: português/obra coletiva. 1.ª ed. – São Paulo: Moderna, 2006.

Cena do filme “ Meu primeiro amor”, lançado em 27/11/1991 (EUA) – Direção: Howard Zieff, Roteiro: Laurice Elehwany.

Claricelispectorcitou.tumblr.com/


Professora Zilda Hipolito Teodoro